25 diciembre 2008

PARA o 2009...

Desejo primeiro que você ame,
E que amando, também seja amado.
E que se não for, seja breve em esquecer.
E que esquecendo, não guarde mágoa.
Desejo, pois, que não seja assim,
Mas se for, saiba ser sem desesperar.
Desejo também que tenha amigos,
Que mesmo maus e inconsequentes,
Sejam corajosos e fiéis,
E que pelo menos num deles
Você possa confiar sem duvidar.
E porque a vida é assim,
Desejo ainda que você tenha inimigos.
Nem muitos, nem poucos,
Mas na medida exacta para que, algumas vezes,
Você se interpele a respeito
De suas próprias certezas.
E que entre eles, haja pelo menos um que seja justo,
Para que você não se sinta demasiado seguro.
Desejo depois que você seja útil,
Mas não insubstituível.
E que nos maus momentos,
Quando não restar mais nada,
Essa utilidade seja suficiente para manter você de pé.
Desejo ainda que você seja tolerante,
Não com os que erram pouco, porque isso é fácil,
Mas com os que erram muito e irremediavelmente,
E que fazendo bom uso dessa tolerância,
Você sirva de exemplo aos outros.
Desejo que você, sendo jovem,
Não amadureça depressa demais,
E que sendo maduro, não insista em rejuvenescer
E que sendo velho, não se dedique ao desespero.
Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor e
É preciso deixar que eles escorram por entre nós.
Desejo por sinal que você seja triste,
Não o ano todo, mas apenas um dia.
Mas que nesse dia descubra
Que o riso diário é bom,
O riso habitual é insosso e o riso constante é insano.
Desejo que você descubra,
Com o máximo de urgência,
Acima e a respeito de tudo, que existem oprimidos,
Injustiçados e infelizes, e que estão à sua volta.
Desejo ainda que você afague um gato,
Alimente um cuco e ouça o joão-de-barro
Erguer triunfante o seu canto matinal
Porque, assim, você se sentirá bem por nada.
Desejo também que você plante uma semente,
Por mais minúscula que seja,
E acompanhe o seu crescimento,
Para que você saiba de quantas
Muitas vidas é feita uma árvore.
Desejo, outrossim, que você tenha dinheiro,
Porque é preciso ser prático.
E que pelo menos uma vez por ano
Coloque um pouco dele
Na sua frente e diga `Isso é meu`,
Só para que fique bem claro quem é o dono de quem.
Desejo também que nenhum de seus afectos morra,
Por ele e por você,
Mas que se morrer, você possa chorar
Sem se lamentar e sofrer sem se culpar.
Desejo por fim que você sendo homem,
Tenha uma boa mulher,
E que sendo mulher,
Tenha um bom homem
E que se amem hoje, amanhã e nos dias seguintes,
E quando estiverem exaustos e sorridentes,
Ainda haja amor para recomeçar.
E se tudo isso acontecer,
Não tenho mais nada a te desejar

19 diciembre 2008




Cansaço

O que há em mim é sobretudo cansaço —
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto em alguém,
Essas coisas todas —
Essas e o que falta nelas eternamente —;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada —
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimno, íssimo, íssimo,
Cansaço...

Álvaro de Campos, in "Poemas"

10 diciembre 2008


Será que tu também gostas de escrever?


Às noites pergunto-me o que será que andas a fazer. Passou tão pouco tempo, apenas te conheço, só falamos aquele dia na fila do pagamento da livraria. Ainda não consigo perceber como consegui ter coragem para iniciar a conversa. Deve ser uma dessas situações que acontecem só uma vez na vida. Sempre me conheci como um homem tímido e pouco ousado quando se trata de iniciar uma conversa com o sexo oposto, mas contigo foi diferente. Poderia encontrar algumas desculpas para justificar a minha coragem ou excesso de curiosidade, sim, talvez foi apenas isso, um excesso de curiosidade. Gosto de lembrar como tudo aconteceu… eu estava a folhear alguns livros, adoro estar naquela loja, perco-me durante horas entre livros e músicas, é a minha forma de, como se diz agora, lidar com o stress, ou talvez, de justificar a vontade de não fazer nada após um dia de trabalho ou uma semana estafante. Pois bem, estava lá quando tu chegaste, cheia de luz, de movimento, aliás foi exactamente isso o que me chamou a atenção, tudo se tornava imóvel à tua volta, foi a tua forma de caminhar, de pegar nos livros das estantes, de falar com o empregado da loja, essa tua graciosidade que te faz tão diferente e especial. Não consegui deixar de olhar-te, acompanhei todos os teus movimentos até que, finalmente fizeste aquilo que por ser simples e descontraído, mais me encantou de ti, com um ar sereno e pragmático sentaste-te no chão à frente da estante dos livros de pintura e ficaste absorvida pela leitura. Foi inédito, ninguém, a não ser as crianças, se senta no chão de uma loja. A minha curiosidade ficou ao rubro, tinha que te conhecer, tinha que adivinhar o que se passava pela cabeça de alguém aparentemente tão diferente. E assim foi, pensei como me havia de aproximar e quando já quase estava rendido à minha timidez, um golpe de coragem e lá estava eu a tocar receosamente no teu ombro. A tua reacção foi tão extraordinária como o teu gesto; sorriste e olhaste para mim com uma mistura de delicadeza e suspeita, mas nunca deixaste de sorrir. Parecia aquele sorriso que oferecemos a uma criança que acaba de dizer a sua primeira asneira, ou pelo menos assim me senti eu, um miúdo ante a tua reacção cheia de gentileza e compreensão. Entreguei-te o meu cartão e fiquei à espera.
Ontem recebi o teu primeiro mail. Dizias que tinhas visitado minha página web e davas-me os parabéns, parece que gostaste das fotografias. Eu continuo estúpido, imagina, com dificuldade em encontrar a resposta certa, eu, o homem habituado a controlar-se emocionalmente, a ser pragmático e eficaz,…mas há algo em ti diferente, quase mágico, tenho esse pressentimento. Eu sei, tudo isto parece absurdo, não me atrevo a falar com os meus amigos nestes termos, aliás, nem sonham o que estou a escrever, nem tão sequer, que costumo escrever. Será que tu também gostas de escrever? Quais serão os teus passatempos? Qual será a tua profissão? Será que há alguém na tua vida? O que é que devo fazer? Coloco todas estás questões no próximo mail?
Bem, vou dormir, a almofada costuma ser boa conselheira. Boa noite minha desconhecida.

30 noviembre 2008

Adeus
De nada serviu a minha vontade…
Eu já lá estava, sem ter chegado todavia.
E tu já lá estavas também, já lá estávamos, percebes?
Mas de nada serviu a minha vontade…
Transformas-te o passado em inútil, como um trapo sujo
Desgastámo-nos em esperas inúteis, as palavras ficaram exaustas, cansamos as lágrimas
...
Dentro de ti não encontro nada e nada de ti me procura…
...
Adeus

23 octubre 2008

Não sei onde estás agora

Não sei onde estás agora. Talvez isso não faria com que algo estivesse diferente, ou talvez diminuísse esta angústia que traz o facto de não saber nada de ti. Resisto-me a aceitar que estás em lado nenhum. Gostava de ter-te aqui, ou ali, ou naquele local, ainda que nunca lá fosse ter contigo, mas seria tudo menos volátil, menos vazio.
Sei que quando estavas aqui, ou ali, ou naquele local e eu sabia que lá estavas, apenas te procurei, poucas vezes te telefonei. Tu também poucas vezes me telefonaste, mas o facto de estares ali, onde eu sabia que estavas e que talvez estivesses pensando e mim, ou tinhas pensado no dia anterior, ou que ao cair a noite ias lembrar-te de algum momento só nosso; isso, que nunca antes valorizei tanto como nestes momentos da tua ausência, isso, acredita, era suficiente para sentir que nunca estava só.
Pergunto-me o que será que eu fui na tua vida, qual o significado que a minha existência teve para ti. Será que consegui estar presente nos momentos em que mais me necessitavas? Será que esperavas mais de mim? Será que eu fazia tanta diferença na tua vida como tu fazes na minha?
Sabes? Tu não estiveste presente em muitos momentos difíceis da minha vida, contudo a opção foi sempre minha, porque sempre soube que bastava deixar transparecer um pequeno sinal do meu sofrimento e tu nunca me irias falhar. Hoje arrependo-me, perdi com aquela atitude, perdi a tua experiência da vida, a tua ternura e perdi, sobretudo, a oportunidade de demonstrar-te o quanto eras importante para mim.
Agora surpreendo-me à busca de ti e acordo da loucura de te procurar quando um pedaço de mim avisa ao resto do meu ser que o esforço é inútil. Subitamente o mundo torna-se imenso e eu formiga, frágil e insignificante, o suficiente para a minha existência só fazer sentido se eu voltar a procurar-te.

O Justo Valor das Coisas Presentes

Não julgues as coisas ausentes como presentes; mas entre as coisas presentes pondera as de mais preço e imagina com quanto ardor as buscarias se não as tivesses à mão. Mas ao mesmo tempo toma cuidado, não seja caso que ao deliciares-te assim nas coisas presentes te habitues a sobrestimá-las; procedendo assim, se um dia as viesses a perder, davas em louco rematado.
Marco Aurélio, in 'Pensamentos'

22 octubre 2008


Escorremo-nos como a areia nas mãos

Perdidos, os nossos braços procuram abraços perdidos.
Não diremos mais nada, fecharemos as portas,
e nesse instante seremos dois desconhecidos
que desfolham margaridas sobre um leito vazio.

Serei uma lembrança, como um livro proibido,
que ninguém confessa ter lido.
Passarão os meses e os anos, seremos só estranhos
ou talvez não tenhamos existido.

Eu continuarei sonhando,
enquanto a vida passa.
Talvez deixe de escrever
ou consiga escrever aquele livro.

Tu, talvez deixarás de olhar-te no espelho,
serás um homem amado e feliz
no teu mundo subterrâneo,
lá, longe de mim.

A que beijou as palmas das tuas mãos
e as preencheu de liberdade,
deixa-as vazias e livres para agarrar outros sonhos
e vai embora, como um rio…

Ficarei com um simples deixar de gostar de ti,
como tu me pediste,
e, prometo,
serei feliz

12 agosto 2008




Tinhas o hábito de ser bela

Afastas-te novamente, num comportamento incompreensível, frio e distante, responsabilizando-me pela tua dor. O teu receio de eu ser quem não sou invade o teu pensamento, o teu olhar fica cego, os teus ouvidos surdos, a tua razão impermeável a qualquer argumento lógico, e odeias-me ainda quando eu sei que me amas.
O nosso lar transformou-se no campo de batalha das tuas incertezas. Há meses que tenho receio de chegar a casa, medo de falar, o meu passado te incomoda e o meu presente te confronta. Dizes que me amas, choras e me abraças, eu beijo o teu corpo e desejo beijar a tua alma, mas o meu amor não chega, nunca é suficiente para dar-te paz e segurança e fico submerso na tua exigência ilimitada.
Acredito que a tua paixão é honesta e compreendo-te, não é difícil compreender o ciúme, mas questiono-me se isto vai ter fim. Não consigo aceitar os teus comportamentos agressivos comigo, e ainda que sei que também sofres, que a tua insegurança te torna infeliz, não consigo, não aguento viver neste paraíso infernal onde o amor provoca ódio e afastamento. Ficaste encarcerada numa incerteza eterna.
Hoje vou-me embora exausto, desiludido, desgastado por este amor doentio. Amei-te tanto, se soubesses, mas hoje já só és aquela que me fascinou com o seu olhar e que tinha o hábito de ser bela.

22 julio 2008




Posso escrever os versos mais tristes esta noite

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".
O vento da noite gira no céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a e por vezes ela também me amou.
Em noites como esta tive-a em meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.

Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.
Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.
Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
A minha alma não se contenta com havê-la perdido.
Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, ela não está comigo.

A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.
Já não a amo, é verdade, mas tanto que a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.
Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.

Porque em noites como esta tive-a em meus braços,
a minha alma não se contenta por havê-la perdido.
Embora seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.

Pablo Neruda

18 julio 2008

06 julio 2008

Ele:
Marcamos um novo encontro. É assim desde há três anos, telefono-te e tu estás sempre disponível para mim.
A minha vida está demasiado preenchida com o “que tem que ser”: o escritório, a gravata, a mulher, os filhos... Tu nunca colocas questões, também não estou à espera que o faças, aliás até agradeço esse teu aparente ar desinteressado com o que habitualmente me rodeia. Eu também nada pergunto, só pretendo aquela imagem, aquele espaço em que abres a porta do teu jardim para mim. Esse local imaginário no qual, por momentos, posso esquecer a vida lá fora e sentir-me livre e rei.
É após estes encontros que compreendo como tu preenches a minha rotineira existência.
Já tentei deixar-te. Vivemos numa sociedade carregada de preconceitos relativamente a este tipo de relações. Fizeram-me sentir egoísta, desonesto, pecador e até psicopata. Mas ninguém percebe, por muito que eu tente explicar que és tu a que me permite manter vivo, és a fonte onde vou beber a agua necessária para continuar neste emaranhado de responsabilidades do qual não posso sair.
Também pensei em ti, tinha receio de estar a empatar a tua vida; até descobrir que o nosso segredo afinal também preenchia a tua vida.
Mas ontem, pela primeira vez nestes três anos, chegaste diferente.
Ela:
Enquanto vou ter contigo mantenho a esperança de encontrar em ti alguém em quem refugiar-me, tenho tanto para contar, preciso que me ouças, que me compreendas.
E os nossos encontros são sempre assim. Eu chego cheia de solidão para ser partilhada. As vezes, até parece que queres saber de mim, …mas não, mais uma vez apenas queres satisfazer o teu desejo. Houve tempos em que as carícias, os beijos, …eram suficientes para dar-me alento e continuar.
Mas agora preciso falar, não procuro só sexo. Ontem, pela primeira vez, ao sentir a tua falta de disponibilidade para mim, despedi-me desajeitadamente.
O que ficaste a pensar, não sei, nem me interessa. Sai com o meu mesmo vazio, com a mesma solidão, com a sensação de, mais uma vez, ter procurado na pessoa errada.

11 mayo 2008

DEFENSA DE LA ALEGRÍA


Defender la alegría como una trinchera
defenderla del escándalo y la rutina
de la miseria y los miserables
de las ausencias transitorias y las definitivas

defender la alegría como un principio
defenderla del pasmo y las pesadillas
de los neutrales y de los neutrones
de las dulces infamias y los graves diagnósticos

defender la alegría como una bandera
defenderla del rayo y la melancolía
de los ingenuos y de los canallas
de la retórica y los paros cardiacos

de las endemias y las academias
defender la alegría como un destino
del fuego y de los bomberos
de los suicidas y los homicidas

de las vacaciones y del agobio
de la obligación de estar alegres
defender la alegría como una certeza
defenderla del óxido y la roña

de la famosa pátina del tiempo
del relente y del oportunismo
de los proxenetas de la risa
defender la alegría como un derecho

defenderla de dios y del invierno
de las mayúsculas y de la muerte
de los apellidos y las lástimas del azar
y también de la alegría

Mario Benedetti

25 abril 2008

17 abril 2008


Viagem à memória


Ontem lembrei-me de ti. Não me perguntes o porquê, não era um dia especial, não vi uma fotografia tua, há muito tempo que não ouço falar de ti…, talvez a chegada das tardes solarengas, a primavera, o calor, …, pode ter sido tudo isso, quem sabe? É um mistério o modo como actua a nossa memória, as vezes o que mais nos faz lembrar uma pessoa é justamente aquilo que havíamos esquecido por ser insignificante, a última reserva do passado. Seja como for, o certo é que a tua imagem surgiu na minha mente interrompendo o meu contacto natural com a realidade e deixei-me levar… Foi mais uma viagem ao meu mundo subterrâneo. Passado tanto tempo da tua ausência, surpreendi-me pela serenidade que encontrei, os significados mudaram, não havia grandes paixões, a memória tinha temperado os sentimentos. Contudo, a tua lembrança tornou-se uma vivência intensa na qual os novos significados e a distância temporal obrigaram-me a olhar para ti de uma forma diferente. Dei por mim a compreender e aceitar comportamentos e atitudes que há alguns anos atrás foram suficientes para nos afastar. Foi assim que mergulhei num mundo fantástico, em que as novas memórias e a imaginação misturaram-se para criar um sonho quase real,...mas, já não eras tu, era a viagem desde ti até outra pessoa.

13 marzo 2008

Numa consulta...
Doutora, as vezes eu sonho que vivo outras vidas, isso enche-me de esperança e diminui a angustia de viver assim. Já me imaginei a viver vidas muito diferentes, de pobres, de ricos, de trabalhadores, de viajantes, de médicos, de artistas, de cozinheiros e até de prostitutas. Todas as vidas tinham um pouco de amor, de solidão, de lágrimas, de sossego, de alegria, de inesperado,… mas, a diferença da minha, nenhuma tinha falta de esperança, nem tamanho sofrimento. Enquanto imagino, sonho e enquanto sonho acordada, vou vivendo, e o tempo vai passando como se estivesse no cinema. É o único que me resta, a minha imaginação. Sabe? As vezes, até penso que me vou curar, sei que isso seria um milagre, mas, nesses dias, até admito a possibilidade da existência de milagres. È inacreditável como a nossa fragilidade nos leva a agarrar-nos a algo que não nos esvazie a alma na totalidade. Eu sei que algumas pessoas pensam que mais valia eu morrer, que estou a sofrer demais, mas o que elas não sabem é que eu ainda não morri por dentro.

21 febrero 2008




Continuamos à espera do telefonema, parece que o tempo ficou parado, é angustiante. Há uns minutos atrás ela tentava tocar uma peça no piano, mas não conseguiu. Eu há meia hora que releio a mesma página do jornal. Hoje é um dia que vai ficar marcado nas nossas vidas, nem sei bem o que hei de fazer, falo com ela, fico calado, o que será que ela precisa? Está a sofrer, sei que está a sofrer, mas nem um lamento, mantém-se em silêncio, quase imóvel. Bem, pelo menos a minha companhia não a incomoda, podia ter regressado ao quarto onde passou a maior parte do dia e ainda não o fez. Embora também possa ter vindo simplesmente para tocar piano e é a minha presença a que não a deixa concentrar-se nas músicas, e se assim fosse? O que é que eu faço? Posso ser educado e perguntar-lhe se quer que me vá embora,… que disparate! É claro que não a vou deixar sozinha num momento destes…amo tanto esta mulher! A tenho amado em segredo todos estes anos, ela nem imagina o esforço que tenho feito para aprender a ama-la sabendo que ela nunca será minha.
Há uns anos atrás queria possui-la, desejava o seu corpo, a sua vida. Com o tempo habituei-me a vê-la nos braços do Jorge, e o meu amor foi mudando, mas não por isso ficou menos intenso. Aprendi a amar os seus gestos delicados, o passar do tempo nos seu rosto, as pequenas rugas à volta dos olhos, os seus cabelos brancos que ela tanto detesta, a sua voz, a sua gargalhada, a sua falta de jeito na cozinha, …em fim, e hoje cá estou eu, mais uma vez, a encantar-me com a sua presença.
Está linda, nunca a tinha visto com esse vestido vermelho, deve ter sido uma prenda do Jorge. Tenho que reconhecer que ele sempre soube como agrada-la. Sempre me pareceu feliz ao lado dele e, embora possa parecer ridículo ou uma desculpa para a minha falta de coragem, este facto sossegava-me e fez com que durante todos estes anos me conforma-se com ser o espectador da sua vida.

...

22 enero 2008




Os teus sonhos...


É nestas horas tristes que fico só, a pensar. E os meus pensamentos vão-se distanciando de mim, até que lá, longe da tua forma mortal, prevaleces como esses eternos viventes. Ali continuam as manifestações mais completas da tua vida, o teu pensamento e a tua arte. Contagiavas-nos com a vida que entendias como um repertório de possibilidades infinitas, magníficas e exuberantes. Fazias-nos sentir como formigas num mundo que se multiplicava aos teus olhos, ou como deuses capazes de criar mundos novos. Até a liberdade forçada de quem tem que constantemente decidir o seu destino, surgia ante ti como a maravilhosa opção de não decidir, de se abandonar ao acontecer. Aí residia a tua genialidade, a tua capacidade para criar e transformar. Mas nesta perfeição da criatividade, não sabias sonhar, os teus sonhos eram únicos, limitados, frágeis e possíveis, arrastando-te à verdadeira desilusão. Um dia ficaste a viver no teu sonho, a residência da tua solidão. A voz que ninguém ouviu. Abandonaste o mundo que te desiludia e entregaste a tua grandeza aos deuses, o trágico destino dos teus sonhos. Embora a injustiça não faça parte dos elementos da natureza, para nós não há deus que nos console. Enquanto a tua extraordinária presença sobrevive entre nós, continuaremos a viver mantendo a esperança mágica de te reencontrar.

10 enero 2008

Há dentro de nós um poço

Há dentro de nós um poço. No fundo dele é que estamos, porque está o que é mais nós, o que nos individualiza, a fonte do que nos enriquece no em que somos humanos. E a vida exterior, o assalto do que nos rodeia, o que visa é esse íntimo de nós para o ocupar, o preencher, o esvaziar do que nos pertence e nos faz ser homens. Jamais como hoje esse assalto foi tão violento, jamais como hoje fomos invadidos do que não é nós. É lá nesse fundo que se gera a espiritualidade, a gravidade do sermos, o encantamento da arte. E a nossa luta é terrível, para nos defendermos no último recesso da nossa intimidade. Porque tudo nos expulsa de lá Quando essa intimidade for preenchida pelo exterior, quando a materialidade se nos for depositando dentro, o homem definitivamente terá em nós morrido.

Vergílio Ferreira